Vida mais próxima da natureza

Ecovilas mostram fortalecimento do ideal de equilíbrio com o meio ambiente até em cidades

Roger Marza

Quando era estudante do curso de Veterinária na Universidade Estadual de Londrina (UEL), Romeu Mattos Leite organizou com os amigos de república uma horta comunitária, na qual não se utilizava agrotóxicos. Na década de 1970 mal se falava em agricultura orgânica no Brasil. “Começamos a entregar a produção na casa dos professores, porque se achava na época que o agrotóxico era a coisa mais moderna que tinha na agricultura”, diz Leite. A produção cresceu, mas também aumentaram as desavenças entre os amigos. Para ele, retirar o veneno dos alimentos não bastava se as relações estivessem contaminadas.

Ao saber da filosofia desenvolvida pelo agricultor japonês Miyozo Yamaguishi, em 1953, de produzir em harmonia com a natureza mantendo relações de paz entre as pessoas, Leite e outros quatro amigos conseguiram estudar esse pensamento no Japão, em 1986. Após dois anos de experiência no país, voltaram ao Brasil e compraram 60 hectares de uma terra em Jaguariúna, no interior de São Paulo, na qual construíram a Vila Yamaguishi. Depois de 32 anos, esse sítio reúne 27 pessoas que compartilham a área, sem a distinção de propriedade privada, em um sistema de coletivização das decisões. Essa ideia, que nasceu do movimento pacifista na década de 1960, não guarda relação hoje com os hippies daquela época, a não ser pelo lema de paz e amor.

A propriedade produz nada menos que mil dúzias de ovos orgânicos por dia, 1,2 mil litros de mel ao ano e mais de 70 variedades de verduras e cogumelos, sem o uso de pesticidas. “Não existe dúvida sobre a viabilidade da produção orgânica”, afirma Leite. Entre a década de 1990, com a constituição do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-HABITAT) e, no início dos anos 2000, da criação da Rede Global de Ecovilas (GEN, sigla de Global Ecovillage Network), esses assentamentos se popularizaram no mundo e, também, no Brasil. Estima-se que haja 88 ecovilas no País, como a Vila Yamaguishi, criada quando essa expressão nem existia. A GEN conecta 15 mil iniciativas desse tipo em todo o mundo.

“Com todo respeito ao movimento alternativo, ecovila não é só bicho-grilo. Cada vez menos vai ser isso, pois é preciso se firmar na ciência e na permacultura, que usa o que há de mais avançado na ciência aliado aos saberes tradicionais”, diz Gabriel Siqueira, diretor de comunicação do Conselho dos Assentamentos Sustentáveis da América Latina no Brasil (CASA Brasil), associada à GEN. De acordo com ele, de cada ecovila registrada, há estimativa de outras três independentes, sem associação direta com esse movimento global.

Nesse sistema, a produção agrícola está intrinsecamente relacionada ao modo de vida comunitário, com a venda do excedente da produção, a disseminação do conhecimento da agricultura orgânica por meio de cursos, utilização de energia renovável e tratamento de dejetos. “Temos uma ideia de que o homem é um devastador. Mas somos parte da natureza e podemos contribuir com o seu desenvolvimento”, diz Gilson Domingues, designer e consultor que é um dos professores do curso “Design de Assentamentos Sustentáveis e Ecovilas”, da Universidade de Taubaté (Unitau).

E projetos de ecovilas estão saindo do papel em São José dos Campos, no Vale do Paraíba, e em Campinas. Ademir Pereira dos Santos, arquiteto e professor de Belas Artes da Unitau e também professor do curso de especialização de ecovilas, participou da criação da Associação Pró-Ecovilas, que conseguiu em 2018 alterar o Plano Diretor de São José dos Campos para incluir assentamentos sustentáveis residenciais. E, com 25 famílias, adquiriram uma área total de 86 mil metros quadrados no Bairro Vargem Grande, próximo à antiga fábrica dos cobertores Parahyba. “A idéia nossa é o equilíbrio de produção agrícola com o ambiente urbano”, diz Santos. Desde 2015, o grupo vem plantando 3 mil árvores para recompor a vegetação, que abriga duas nascentes que alimentam o rio Paraíba, e já está plantando hortaliças. As famílias, no entanto, ainda não moram no local. O grupo está em vias de aprovação de uma casa coletiva, que abrigará a todos. E, após essa experiência comunitária vivendo em conjunto num grande casa, cada um poderá construir a sua própria unidade habitacional na área.

Uma ecovila não precisa ser necessariamente um grupo de casas, mas seu conceito também pode se aplicar em um prédio. Essa é a experiência de um grupo de mulheres do bairro Itapuã, em Salvador na Bahia. Envolvidas com o espírito da sustentabilidade, dez mulheres compraram em 2014 um terreno de 1,3 mil metros quadrados, vizinho a uma área de preservação ambiental e próxima a casa onde viveu o poeta e cantor Vinicius de Moraes durante sua estadia na Bahia. Como a área tem restrições para ocupação, elas decidiram construir um prédio de dois andares com nove apartamentos em uma área de 300 metros quadrados.

“Uma coisa fundamental: é um grupo de pessoas que pensam com o mesmo objetivo. E, apesar de ter formalização, que foi necessária para construir um condomínio e um estatuto que a lei nos obriga, tudo é feito a partir do consenso. Todas as decisões são feitas com reuniões de grupo realizadas semanalmente.  Importa-nos não apenas a questão da parte ecológica, mas de relacionamentos. Somos amigos, é claro que há algumas divergências, mas trabalhamos isso de uma outra forma, sem brigas. Isso faz uma diferença enorme”, explica Denise Noronha, artista plástica e uma das fundadoras da Ecovila Maria.

Há experiências mais alternativas na sul da Bahia. É o caso da Ecovila Piracanga, no município de Maraú, 35 quilômetros de Itacaré. Em uma área rural e litorânea, cerca de 200 pessoas vivem em plena harmonia com a natureza, cuja relação vai desde a alimentação vegana aos cuidados de higiene usando produtos de limpeza naturais e biodegradáveis. O espaço foi adquirido pela portuguesa Angelina Ataíde, especialista em leitura de aura, uma especialidade do lugar e procurado por muitos turistas dispostos a abrir mão do que é considerado conforto na cidade, especialmente ao que se refere sinal para celulares. Embora no restaurante haja sinal de wi-fi, a conexão é interna, consigo mesmo, não apenas com leituras de aura, mas aulas de música, surf e terapias holísticas.

Assim como em Piracanga, a Ecovila Clareando é cercada de florestas. Localizada entre as cidades de Piracaia e Joanópolis, esse grupo está a uma hora da cidade de São Paulo, em plena Serra da Mantiqueira, a 1,1 mil metros de altitude. No local, que busca também criar um ambiente de harmonia entre os moradores, cada família desenvolve projetos de permacultura, apicultura, horticultura, além de construção com materiais alternativos.

“A Ecovila Clareando foi uma das primeiras que visitamos para nos inspirar. Recebemos também muitas informações de gente de nosso grupo sobre a Ecovila Piracanga. Essas duas áreas são exemplos de assentamentos sustentáveis”, diz Ademir Pereira dos Santos, da Ecovila Vargem Grande, em São José dos Campos. Além desses assentamentos, o grupo de São José dos Campos se inspirou nos estudos do arquiteto Flávio Januário José, que se especializou nessas construções e está participando da constituição de duas áreas nesses moldes em Campinas, que começarão a receber moradores até o fim de 2021: as ecovilas São Luiz e Santa Margarida, ambas em Barão Geraldo, no qual está localizada a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

A São Luiz é uma ecovila destinada mais à produção rural, para a venda de produtos, e está em uma área de 43 mil metros quadrados. Neste local, 20 famílias ocuparão as casas. Mas, antes da construção das residências, já estão produzindo mandioca, girassol e milho. Essa área é praticamente vizinha à Ecovila Santa Margarida, que terá uma vocação mais urbana, apesar de também manter o espírito de produção de seu próprio alimento. Nesta, serão 50 famílias, que esperam a finalização da infra-estrutura para iniciar a construção das casas. “Foram nove anos de planejamento, regularização de documentos, para ser implantado tudo dentro da legalidade e cumprindo com a função social da terra”, diz José.

Segundo ele, a fiação é subterrânea, liberando o espaço para o plantio de árvores; há biovaletas, designer feito na calçada que colabora para o escoamento de água pluvial de forma que não retém sedimentos e dissipa energia da água, reduzindo a velocidade em que a água vai para o rio Anhumas, evitando desassoreamento; jardins de chuva, para escoamento da água da chuva; projeto de uma futura usina de energia solar; e uma parceria com um proprietário rural para que a associação de moradores participe da produção rural de alimentos para consumo próprio e venda do excedente. “Ecovila é um assentamento humano sustentável e tem que ter premissa do equilíbrio das dimensões social, ecológica e econômica. É preciso ter uma gestão participativa e comunitária. Esse conceito pode ter desde em um prédio horizontal, um conjunto de fazendas, ou espalhado em um bairro”, explica o arquiteto.

Diferentemente do que ocorreu em São José dos Campos, em Campinas o Instituto Flor do Anhumas de Práticas Sustentáveis, que fez a ponte entre o grupo das ecovilas com o poder público, não conseguiu a aprovação de uma lei que discipline esse tipo de construção na cidade, tornando o processo mais demorado. Mas para Emmanuel Khodja, que há 15 anos atua como consultor de ecovilas, é possível estar dentro da legalidade usando os instrumentos jurídicos já existentes.

Segundo ele, é muito usada a legislação que regula condomínios, com a negociação do que será área privativa o que será a fração ideal do terreno, de uso comunitário. “O que não temos no Brasil e já existe na Itália e Estados Unidos é uma figura jurídica (para ecovilas)”, explica. Segundo ele, nessa regulamentação no exterior, fica acordado não apenas o uso da terra pelos membros do assentamento, mas também subgrupos econômicos dentro da área, como o compartilhamento de veículos, equipamentos e serviços como cursos e escolas.

Romeu Mattos Leite, da Vila Yamaguishi, concorda que é importante a difusão do espírito das ecovilas no Brasil, especialmente em razão das mudanças que a pandemia do novo coronavírus tem provocado. Mas ele alerta que há empreendimentos que se dizem ecovilas, mas não seguem a filosofia do projeto de uma vida em harmonia com a natureza; e há gente da cidade que não está preparada para a vida no campo. “Não entendo uma ecovila que não trabalha com sistema orgânico, porque precisamos ter harmonia com o planeta. E não é simplesmente morar no campo e ficar de boa, é uma demonstração prática dessa filosofia de vida.”

Improvisação Livre – Com esse espírito dessa reportagem, fiz a improvisação livre “Jardim” (ouça aqui), com som de saxofone e paisagem sonora do fundo do prédio onde moro em São Paulo, no qual há uma mangueira, bananeira, e outras árvores nas quais há vários pássaros. Os sons desse lugar também me inspiraram músicas que fazem parte do “Alma da Terra”, meu álbum de estreia lançado no último dia 15 de julho. Acesse por meio do link: https://tratore.ffm.to/almadaterra

Publicado por rogermarza

Sou saxofonista, jornalista e escritor.

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